O LUGAR ESSENCIAL DA CULTURA
A Cultura deve
reivindicar lugar junto às políticas que demandam recursos públicos e deve deixar de fazê-lo perifericamente. Chega
de nos comportarmos como se fossemos de importância menor. Cultura demarca a
condição de humanidade. Antes do século XVIII, “cultura” era termo ligado ao
“cultivo”; cuidado com a terra, com as crianças ou culto ao sagrado. O que não
impediu que o sagrado fosse tratado como dogma intolerante pela elite religiosa
e feudal, como se sabe. Nem que povos fossem escravizados sob influência do
mercantilismo europeu.
Após o século XVIII,
ganha ênfase Cultura como Civilização, ligada a valorização da
vida civil. Mas o “grau de civilização”serviu para justificar a atitude
colonizadora, hegemonista e arrogante das potências europeias. Só no Século XIX,
com a critica marxista à exploração econômica do ser humano e as filosofias que
passaram a valorizar as Humanidades, “Cultura” passa a ser um conceito de
abrangência, envolvendo as artes, as formas
do trabalho, as formas da habitação, do vestuário, da culinária, das religiões,
das expressões de lazer e os diferentes sistemas de relações sociais.
A concepção plural nascente
no século XIX frutificou no Século XX. Na
entrada do século XXI chegou-se a um entendimento internacional entre nações
sobre a diversidade cultural, na 33ª reunião da Conferência Geral ONU para
Educação, a Ciência e a Cultura, celebrada em Paris em outubro de 2005. A
pactuação diz: “A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas
formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio
cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas
também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e
fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias
empregados.”
Demorou para que se
consolidasse internacionalmente a ideia da diversidade. E depende ainda de
muito embate para que a diversidade cultural -
como acesso às formas múltiplas de ser, de expressar-se e criar
artisticamente - seja direito efetivo. A formulação e implementação de
políticas públicas de cultura é determinante na garantia desses direitos. Para
formulá-las é necessário identificar os fatores presentes na atualidade que
influenciam sobre a vida concreta das pessoas e, enquanto condição cultural, a
produção da própria condição humana. Destaco
alguns desses elementos:
1- O ATROFIAMENTO DO
TRABALHO CRIATIVO. Na produção industrial capitalista o trabalho humano é
segmentado e o trabalhador não responde pelo conteúdo daquilo que produz, nem
pela utilidade ou necessidade social da produção. A crise ecológica é a crueza
dessa situação sistêmica.
2- A INDÚSTRIA
CULTURAL tornou a produção simbólica e do imaginário uma das mais destacadas e importantes
variações da mercadoria. A fabricação dos produtos de
divertimento se tornou a principal estética da mercadoria cultural. As pessoas
passam a consumidoras de cultura no tempo livre, mecanizando também esse tempo
e a própria ideia de felicidade.
3- A SEPARAÇÃO ENTRE
PRODUÇÃO E CONSUMO DE CULTURA NAS CONDIÇÕES DO MERCADO significa que a em larga
escala a cultura deixa de ser terreno da expressão humana para ser produzida
por especialistas e pela indústria. Tal separação levou o pensador Gui Debord (1931 —1994) a dizer que o espetáculo é a principal
produção da sociedade atual.
A cultura, embora
com tudo isso, não está morta como movimento de criação de sentido. Como
lembrou o historiador Peter Burke, ela “envolve as pessoas imprimindo
significados sociais” no correr dos tempos, num movimento sempre ativo. A
massificação da indústria cultural não é capaz de interromper o dinamismo da
cultura vivida, mesmo porque as pessoas assimilam, a seu modo, imagens da
televisão e da publicidade, também adaptando e modificando os sistemas de
significados produzidos e processados pela indústria cultural.
A política pública
de cultura faz sentido como criadora/estimuladora de circuitos culturais
acessíveis aos cidadãos, no sentido de que possam fruir e criar na diversidade
cultural. É ativadora da expressão como interesse social, na medida em que cada
pessoa traz em si vontades e inspiração para viver e criar com arte. Por fim, a
Cultura é um poderoso elemento do
urbanismo, atuando pela qualidade de vida nas cidades, “costurando as múltiplas culturas tendo em
vista projetos comuns” (Richard Sennett), e contribuindo educativamente com o potencial que é próprio da arte.
A política de
cultura não interessa apenas aos produtores culturais e artistas
especializados. Interessa - por questões de saúde, de segurança, de educação,
de sociabilidade, de qualificação do espaço urbano e de ampliação de
referenciais de opinião e expressão - à cidadania ativa de todos.
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